19.8.05

Para alguém que gosta da solidão


Este post dedico-o ao Finúrias, que embora eu não conheça pessoalmente, me perturba a sua postura de solitário...peço desculpa pela extensão do poema, embora tenha cortado algumas partes, traduz um pouco a imagem que tenho dele.

(...)

Basta abrir a porta e vejo-te,
Arquitecto impassível das tuas
Próprias sombras, preso
pela vertigem do silêncio a este
chão usado, a esta mesa, aquela
súbita reprodução dos girassóis
de Van Gogh – devoradores
olhos vegetais e cegos
para sempre, loucura
e primavera no meio de férias
transitórias e intensas
e pontas de cigarro e restos
de batôn no lábio triste de
uma chávena vazia.

II

Às vezes tento empurrar-te
Todo pelas janelas
Para te encheres destas ruas
E apressadas gentes
Mas tu recuperas sempre
A tua poeira mais íntima, o contador
Do aquecimento, estas estantes já habituadas
A todas as lutas das palavras,
Perfeitamente cépticas entre bíblias,
Novelas, tratados, dicionários,
Guias turísticos ou apenas

O último número dos jornais
Ao fim da tarde e através
Das florestas e do mar
E risos de crianças a subirem
Como balões, antes da noite, ou outras
Maneiras de existir contente.

III

À mesa solitária apareces
Por vezes, de surpresa,
E todas as paredes entram e ficam
Em mim.

IV

Os que já em ti dormiram sós
Ou nus e juntos para se cruzarem
Na húmida pressa do amor
Captado entre os joelhos
E caírem, depois, cada um
Para dentro dos seus próprios erros,

Seriam jovens? Velhos? Terão
Perguntado por si mesmos diante
dos espelhos? Corações chegados
de longas infâncias, parentes, sinais
decifrados à custa de muitos
lugares ou coisa que não havia
antes de as sofrer ou perdoar,

e a companhia do álcool em vez
do sono, as diferentes posições
dos factos e dos corpos,
gratuitos sorrisos que salvaram
quase tudo segredos mútuos
dor partilhada insultos ainda
por esquecer, despedidas
ao longo de um vento
cada vez mais cheio de olhos
velozes e aflitos ou algo
de jovem e de bom

regressarem a ti todas as noites
o que queria dizer para eles?
Ter-se-ão zangado sem nada aprenderem
Do ódio mútuo, da difícil
Alegria de tocar de novo
A aurora do amor nos lábios
E a nudez insondável das palavras
Que nascem dos beijos e das tempestades
Da alma pelo corpo todo?



V

À noite, quando entro, dispo-te
Com a lâmpada do tecto mas
Nas cortinas tu cerras
As pálpebras e as tuas mãos
Guardam-te sob as portas
Do armário e ocultas
O rosto entre as madeixas
Das roupas penduradas.

VI

Assim te faço cúmplice
Do encontro impossível com a amada
Longe, e releio a última
carta, o calor instantâneo
dos dedos ausentes ali presos
a cada linha como uma
caricia. Depressa, já posso
fechar os olhos. Boa noite, digo
e volto a dizer até que algo
no tempo, uma flor, uma frase,
as mãos do escuro apertadas
nos nervos, te trazem
de novo para entrarmos
juntos no sono. Até amanhã...

Vitor Matos e Sá

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