16.5.06
Menos um dia a somar à vida
Já vos falei aqui da Manel e do seu percurso de vida algo atribulado, de como ela não confiava praticamente em ninguém, excepto em mim.
Quando foi presa a dada altura e eu tinha duas amigas que eram Guardas Prisionais, tive a facilidade de lhe fazer algumas visitas, em dias que seriam só para a família, mas como a dela a proscreveu, ela não tinha mais ninguém que lhe trouxesse os ecos da vida fora de muros, nem com quem desabafar sobre aquele degredo, que não mata, mas vai moendo. Consegui fazer entrar um walkman, que era proibido na altura, para que ela se abstraísse um pouco daquela realidade, e incentivei-a a escrever-me fosse o que fosse, desde que lhe aliviasse aquele exílio.
Recebi várias cartas dela, todas tristes e melancólicas, como é óbvio e a contar o que eram os seus dias de 24h passadas sempre fechada naquele cubículo, que tinha sido construído para albergar 8 detidas, mas onde estavam na altura, 22 mulheres e duas crianças, tive oportunidade de o constatar pessoalmente, devido às relações privilegiadas com as guardas e só vos digo que me fez lembrar os filmes sobre os campos de concentração, com as devidas diferenças, claro.
Eu pensava, e não só eu, que o que mais lhes custava era olhar as grades, que lhes recordavam constantemente a sua condição, mas não era assim, e isso foi-me confirmado tanto por guardas, como por ex-reclusos com quem falei, o que mais perturbava eram os sons das chaves nos gradões, nas sucessivas rondas, o som metálico a ecoar naquele vazio de vida.
Decidi compilar excertos de algumas cartas dela, para vos fazer um relato de como se passa um dia naquele lugar; as vivências foram dela, só as palavras são minhas.
Seis da manhã. Ainda é de noite, abre os olhos para os silêncio que ainda é possível ouvir, só entrecortados pelo som das chaves nos gradões. Sempre aquele som, o bater do ferro, seja dia ou noite é só o que se ouve a acompanhar a solidão.
Levanta-se para desfrutar a única hora de paz que lhe resta no dia; vai tomar banho fora da escala, que só começa às 7h e há água que chegue para as 4 ou 5 que têm direito nesse dia da parte da manhã, só até às 7.30h, mais banhos só á noite quando de novo baterem os gradões às 18h.
Antes de ir para o duche, põe a cafeteira ao lume – um luxo numa prisão – e quando sai, acaba de fazer o café, escreve um pouco e aprecia os sons fracos que lhe chegam do exterior, embora tenha de se esforçar para colocar em segundo plano, os contínuos sons das portas de ferro e das chaves a bater, sempre este som metálico ao longo do dia...
7 horas da manhã, chegou a guarda de serviço, acabou-se o sossego naquele cubículo feito para oito, e onde estão vinte e duas, mais duas crianças...
Começam os sons das vozes roucas ao levantar, as mesmas perguntas: ” ’tão? Demora muito esse duche? Olha o “conto”, só faltam 15 minutos”; “quem me tirou daqui da corda o meu soutien?”; “fizeste café? Dás-me um bocadito? Esta semana não tenho visita”...
7.30h , parece a tropa tudo enfileirado, vestido e penteado: ”não sabem que não se vem para o conto de robe?” vai-te vestir imediatamente!”
-“Srª Guarda, hoje há recreio?”
-“sei lá, depende do que se passar naquele lado e do tempo”...
-“vá, quem está escalado comece com as limpezas, as outras fiquem sossegadinhas a ver se vamos ao recreio”
-“e se chover?”
-“não vais ao recreio, mas ficas sossegada na mesma, percebes?”
Depois de uma manhã a matar tempo, chegam as marmitas com a sopa indefinível, e outra vez frango cozido, chamam-lhe assado...poucas comem, mas as mais “batidas”, que já lá estão há mais tempo, guardam para a noite quando a guarda se vai embora, fazem um refogado com cebola (que só entrou à sucapa, como se fosse para pôr na salada, pois é proibido cozinhar) e temperam a gosto, para ficar comestível.
-“quantos pregos encontraste na sopa hoje?”
-“tive sorte, foi só um parafuso...”
- “vamos ver televisão toda a tarde, está a chover, não há recreio...”
- “realmente, aquela paisagem do parque das motorizadas dos guardas, deixa saudades...ah!ah!ah!”
- “são só 3 metros por 2 , mas dá para olhar o céu sem grades...”
Mais um dia de headphones nas orelhas, embora o som das chaves nos gradões não consiga ser aliviado ou substituído, mas assim não se deixa agredir pelas enormidades que trocam as assassinas com as burlonas, ou as traficantes com as aspirantes a meras “malfeitoras”, miúdas que nem sabem onde estão e se gabam do que hão-de fazer, até que lhes começam a aparecer os “pombos” e elas não entendem o que querem dizer aqueles nºs de artigos do Código Penal e é então que se viram para as lágrimas e o arrependimento, ou para variar, volta e meia, lá vem uma cena de pancadaria ou uma tentativa de suicídio, a semana passada foi a Clara que engoliu mais umas lâminas e duas colheres de café, uma ficou presa no esófago e ela passou muito mal, mas já não lhe ligam, passa a vida nisto, um desespero que nada aplaca, o desespero de existir, a raiva de ter nascido e não ter força para viver. Ela gosta de conversar com ela, a Clara, é só ela a quem confessa os mais recônditos desejos e temores, embora não dê ouvidos aos conselhos que ouve...
A guarda já foi embora, lá vai tudo para a cozinha preparar as iguarias possíveis, e de barriga cheia, ela nem espera pela habitual competição pelos canais de TV, às 21.30h já dorme e às 22h, apagam as luzes, e perpetua-se na noite o bater das chaves, o violento tilintar metálico.
Mais um dia no reino do insuportável, e as chaves continuam a bater nos gradões, ronda a ronda, incansáveis no tormento, na tortura em que se transformam para quem essas chaves só fecham portas, nunca as abrem...
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