27.8.06

AGORA QUE ABUSEI DO SURREALISMO, VOLTEMOS AO REALISMO!

 
Os que são frequentadores assíduos desta mesa de café, já leram estórias sobre a Manel, que editei no início de Março deste ano. Pode parecer-vos uma fixação minha, esta insistência em escrever sobre alguém que nunca obteve reconhecimento, porque simplesmente nada fez digno de nota no aspecto positivo, tampouco se trata de uma apologia de percursos de vida que não levam a nenhum outro lado, que não seja: a Morte, seja ela física ou meramente espiritual. Antes pelo contrário: faço questão de dar voz a quem a já não tem, para exorcizar todos os fantasmas que não conseguiu em vida e para que não se repitam estas perdas absurdas.
Passavam-se por vezes meses, sem a ver e isso era normal em quem não tem modo de vida ou poiso certo, mas quando ouvi dizer que pendia sobre ela um mandato de captura, fiquei preocupada e tentei encontrá-la nos circuitos habituais mas sem sucesso. Entretanto, num sítio perfeitamente inusitado no meio de um jardim pouco concorrido onde eu costumava fotografar, pareceu-me ver o seu vulto e chamei. Era realmente ela, com o ar perdido que aparentava nos seus (raros) momentos de lucidez; aqueles que experimentava entre o fim de uma “pedra”, sem no entanto sentir ainda os sintomas físicos de privação, que conhecemos por “ressaca”.
Eram para ela, alturas muito dolorosas em que começava a discernir a crua realidade em que estava inserida, a par com o percurso impiedoso de todas as vidas comuns à sua e cujo fim era sempre negro. Nestas alturas não se conversava com ela, tratava-se de um monólogo; pelo menos comigo, aproveitava para desabafar tudo o que trazia aprisionado por entre pedradas e ressacas. Comigo não tinha reservas, eu tinha sempre acompanhado todo o processo sem nunca fazer juízos de moral, nada havia a esconder, afinal, não somos melhores que ninguém, há muito que aprendi a evitar o chavão: desta água não beberei...
A Manel estava naquele sítio, àquela hora (domingo às 9 da manhã), para se poder sentir um pouco em paz, sabia do mandato de captura e andava fugida e disfarçada com grandes casacos (por sorte era Inverno) e cachecóis que lhe tapavam a cara, ali sempre se podia sentir à vontade para tirar o disfarce e tentar pensar no que haveria a fazer. Estava cansada de estar constantemente a olhar pelo ombro, a decorar as matrículas dos carros, andava nisto há dois meses e não aguentava mais a pressão. Disse-me ter cinco contos no bolso e duas hipóteses: continuava a fugir e ia comprar uma dose, que a manteria “up” durante 3 ou 4 horas, ou então acabava com aquilo de uma vez e ia para casa esperar pela Secção de Justiça.
A primeira hipótese implicava a continuação da fuga e uma maior dificuldade em encontrar e negociar produto, pois a palavra espalha-se e ninguém que vender ou comprar a quem anda a ser procurado, para além de ter de continuar a mudar de poiso praticamente todos os dias, por vezes ter de dormir em obras, ou em portas de prédios mais ou menos resguardadas das rajadas frias do Inverno, pois nem um cobertor tinha para se abrigar. Não valia a pena apelar à caridade da família ou amigos, já a todos havia defraudado e todas as portas se fecharam incondicionalmente.
Até das “pedradas” estava farta, tinha a noção da figura ridícula que fazia quando consumia coca e ficava com os olhos esbugalhados a ver em cada sombra, um agente ameaçador, ao ponto de o fornecedor ter aberto na barraca em que vendia e consumiam, um furo na parede de madeira, para ela poder estar por vezes, mais de 2 horas com mais uns chutos pelo meio a espreitar e a ver coisas que não existiam. Ela dizia que a barraca era surreal, tinha espaço para uma cama de casal e 1 metro de intervalo entre a parede; chovia lá dentro e o chão era o original, ou seja: terra, mesmo. Havia um balde onde o dono defecava e ao lado um saco do lixo, sempre cheio e dentro do qual se matavam à paulada, as ratazanas que entravam por todos os buracos, o dono da barraca quase não dormia, estava de dia e de noite a vender e a consumir, sempre com a mesma roupa, quase não se podia mexer, tinha os pés a apodrecer, numa chaga constante que nada poderia curar, sem um mínimo de higiene. Escusado será dizer que o cheiro era fétido e naquele cubículo chegavam a estar a consumir, umas seis a oito pessoas. Ela dizia que não sabia como conseguia aguentar aquilo, ver gajos a chutar no sexo e ter de ajudar tipas a chutarem-se no pescoço.
Parecia-me estar genuinamente farta daquelas vivências. Para cúmulo, na última vez que fora a casa no dia do seu aniversário, roubara um cheque a um familiar e este, quando se apercebeu, tirou-lhe e destruiu todas as doses que ela tinha para vender, que ainda não tinha pago ao dealer, o que queria dizer que estava em muito maus lençóis, isto tinha sido há poucos dias e cada um que passava, a deixava mais ansiosa em relação ao conflito eminente.
Continuou a falar sobre as suas dores, os seus medos e dizia que apesar da heroína ser o pior dos infernos, ao menos não tinha de se preocupar com os homens que acompanhava e em casa de quem ficava por vezes, pois neste meio já se perdeu toda a lascívia e nunca fora objecto de desejo sexual, pois esse impulso é irremediavelmente perdido por quem a consome. Contudo, tivera quase sempre a sorte de não ser atacada, sobretudo em Lisboa nos lugares onde habitualmente se abastecia a horas impróprias; ia sozinha ao Casal Ventoso, fosse a que horas fosse, as ruas estavam sempre cheias de uma multidão que vendia desde “branca ou castanha”, aos outros que vendiam o papel de alumínio e uns minutos numa tenda para se matar a ressaca, logo ali.
Quando tinha carro (vendera-o ao desbarato, no meio de uma ressaca), quase poderia ganhar as doses que precisava, se transportasse de e para o Casal, as pessoas que procuravam o alívio para o vício. Conhecera alguns que era assim que conseguiam alimentar o vício que os consumia, mas ela não gostava de Lisboa e não queria ser assumidamente uma sem – abrigo, por cá sempre conseguia de vez em quando ir dormir a casa e tomar um banho, quando conseguia chegar a horas “decentes”, o que era raro; as noites passavam-se entre esperas para arranjar o dinheiro suficiente para ir comprar, ou na tentativa de saber quem teria o produto e depois, a consumi-lo pela noite dentro até deixar (quando calhava) só um bocadito para aplacar a ressaca com que sempre acordava. Não parava de insistir em como estava farta de acordar, todas as manhãs e ter de recomeçar tudo outra vez e teimava em rogar pragas aos Deuses todos, perguntando o porquê de ainda estar viva...custava-me ouvi-la dizer aquilo, sobretudo porque sabia que falava a sério, que preferia não acordar, a continuar naquela sobrevivência doentia, que sabia não levar a mais nenhum lado, queria poupar-se a agonia e não tinha coragem de se suicidar porque, dizia: “ há pessoas que me amam, mais ainda do que eu as amo a elas, acho que iriam ficar muito tristes ao aperceber-se do definitivo de tal acto, mesmo mal como ando agora, sei que eles ainda têm uma pequena esperança de que eu tenha força para deixar esta merda!”
Havia um misto de raiva e tristeza no seu olhar e pareceu ficar mais pálida ainda e uma rajada de vento invernoso fê-la tremer e quando os sintomas físicos se começaram a manifestar, esqueceu toda a lucidez e um só pensamento lhe preenchia o cérebro: tirar a ressaca. Assim partiu no seu transe hipnótico, escolhendo de novo o caminho mais penoso e difícil.
Soube que passados 3 dias, se entregou realmente à Secção de Justiça, da forma que me havia dito: foi para casa e esperou que a mãe os chamasse. Podia finalmente descansar... Posted by Picasa

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