6.9.06

O Cão



O M. era o que se pode chamar: um meliante solitário. Actuava sempre sozinho, dizia que assim nunca era “chibado” pelo eventual comparsa, que era o que geralmente acontecia aos gatunos que conhecera.
Era um Robin Hood dos tempos modernos, embora com uma pequena diferença: só roubava aos ricos, mas revertia tudo sempre para o mesmo pobre, que era ele próprio...
Numa noite qualquer, andava a matar o tempo a passear de carro e lembrou-se de passar frente a uma casa que andava a “micar” já há alguns meses, tentando estabelecer um padrão de abordagem que lhe facilitasse um pouco a tarefa, pois a casa era de construção robusta e com um grande jardim à frente, o que era perfeito, exceptuando o facto de um aparentemente agressivo Dobermann, que passeava solto quando não estava ninguém.
A noite estava quente, uma leve brisa embalava os ramos das árvores do jardim, decidiu sair do carro e o bater da porta, fez com que o cão começasse a ladrar e a dirigir-se para o portão de entrada ao mesmo tempo que ele. Parou em frente ao portão, atrás do qual o cão ladrava e arreganhava os dentes, que brilhavam com a luz dos candeeiros da rua.
Ficou ali a fitá-lo nos olhos, até que o bicho se fartou de ladrar e ficou a fitá-lo também. Foi-se aproximando devagar, deixando que ele o cheirasse mais de perto a cada passo e estendeu a mão por entre os ferros trabalhados do portão, o bicho cheirou e tornou a cheirar e lá chegou à conclusão que devia abanar a cauda, pois não lhe cheirava a inimigo.
Decidiu saltar o portão, que não era muito alto e ir brincar com o bicho, que até achava bastante simpático (sempre tivera um fraco por animais) e ficou lá pelo menos, meia hora a brincar, a correr à volta da casa e a esconder-se por detrás dos arbustos, como que a brincar às escondidas com o bichano. Além do cão já se mostrar cansado, ele próprio estava também esgotado pela sessão de brincadeira, decidiu então que estava na hora de sair dali. Nem pensou mais em assaltar a casa, aquele bocado bem passado preenchera todas as suas necessidades.
Como na altura não abundavam boas casas “para fazer”, passadas umas três semanas decidiu voltar para terminar o que havia começado, na dita casa onde acabara por fazer um amigo, à revelia do seu dono.
Passou primeiro a maior velocidade, só para verificar se havia ou não, luzes no interior da casa. Apercebendo-se que não, passou novamente mais devagar, abrandando mais ainda em frente à casa para ver se o cão estava solto, facto que confirmaria ou não a ausência dos inquilinos.
Qual não é o seu espanto, quando vê o cão ao longe dentro do jardim, a correr direito ao portão e ele nem teve tempo de esboçar qualquer gesto, já o cão tinha entrado pela janela aberta do carro, depois de ter feito um voo majestoso sobre o portão, aterrando contra ele e começando a lambê-lo profusamente. Conseguiu engatar a mudança e sair dali, que foi a primeira coisa que lhe ocorreu...
Deu consigo em casa, com um bichano com cerca de 40 kg para alimentar e continuava sem ter conseguido “fazer a casa”, ele bem coçava a cabeça, mas ideias brilhantes, nem uma.
Reparou no dia seguinte que os donos davam alvíssaras a quem entregasse o cão, ou desse informações que conduzissem à sua devolução. Não quis saber, afeiçoara-se ao animal e não tencionava devolvê-lo, tampouco a troco de dinheiro; eram coisas dele, tinha os seus princípios e as suas repulsas pessoais e intransmissíveis.
Passaram-se uns dias e o bichano comia que se fartava, M. começou a ver que não tinha hipótese de o alimentar, começando então a ponderar a hipótese de devolvê-lo, embora isso o deixasse triste e com um forte sentimento de perda.
Acabou por fazê-lo sem aceitar qualquer pagamento que fosse. Nada podia mitigar as saudades que já sentia, sem sequer se ter separado dele fisicamente, já lhe roíam as entranhas numa dor estranha...
Nunca mais olhou para a casa ou para o jardim, desviava o olhar quando passava de carro e acelerava sempre um pouco naquela zona, mas não conseguia deixar de pensar, que o cão é que o escolhera a ele e era com um parceiro assim que seria capaz de partilhar a vida...

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