8.5.06

A Scania Vabis


Há coisas engraçadas. Por causa deste post do Manel, lembrei-me de alguém que havia esquecido há cerca de 30 anos... a Albertina.
A Albertina era um mistério insondável, resguardada na sua timidez e, quanto a mim, no seu complexo de inferioridade. Era feia, ou melhor, aquilo que comumente rotulamos de feia: tinha o cabelo cortado “à tigela”, tinha umas feições duras e uns olhos desconfiados, uma boca sem forma definida e uma dentadura que era um misto de cavalar, com vampiresco dado os seus caninos serem demasiado evidentes. Raramente se ria, o máximo que a vi fazer, acho que foi um esgar que pretendia ser um sorriso.
Como muitos dos meus colegas, vivia numa qualquer aldeia nos arrabaldes de Coimbra, era de famílias pobres e nunca a vi com uma roupa nova. Escusado será dizer que a crueldade da adolescência dos meus colegas, lhe fazia a vida negra. Para começar, puseram-lhe a alcunha de “Scania Vabis”, que era um modelo de camião da altura, do mais feio que existia, e estavam sempre a meter-se com ela, pois sabiam que nunca respondia a nada, não dizia nada, daquela boca raramente saiam frases que não fossem solicitadas nalguma aula, era assim a Albertina, para os outros.
Eu confesso que sempre tive uma tendência para me colocar do lado dos fracos e indefesos, a quem sempre tive o impulso incontrolável de estender uma mão, de dar uma palavra de afecto, ou simplesmente de solidariedade. Sempre fui assim e ainda sou, é algo que não consigo mudar, embora por vezes me arrependa, pois sofro coisas que não são “minhas”.
Na altura o dinheiro escasseava, mais ainda no meio escolar e a minha e muitas famílias recorriam ao que se chamava na altura o N.A .S.E. (núcleo de acção social escolar), os livros eram por ele fornecidos o que já ajudava. Quanto ao lanche, não havia dinheiro para muito e quando dava para uma bola de Berlim era bem bom. Ainda me lembro que costumava-mos juntar-nos 3 colegas e pedir no bar:” Dª Rosa, são duas bolas e um de carne”, e ela ficava pior que estragada, mas eram mesmo 2 bolas de Berlim e 1 pastel de carne...
Tinham surgido no mercado há pouco tempo, os yogurtes Yoplait com sabores, coisa inovadora e uma tentação, mas uma tentação cara que custava, se bem me lembro: 11$00 cada um, o que era um balúrdio, custava mais que algumas marcas de tabaco, o SG Filtro custava 14$00. No entanto, a Albertina comprava aos 3 e 4 por dia, e como me elegeu a sua única amiga, defensora e confidente, fazia questão de me oferecer um ou dois também. Confesso que aquilo me fazia confusão, apesar de adorar a oferta, pois a Albertina não aparentava ter posses que permitissem tais gastos, e muitas vezes me inquiri – e os colegas também – se ela não andaria a roubar dinheiro aos pais.
O facto é que nunca viemos a apurar a origem de tais recursos, pois como sabem na adolescência as escalas de valores mudam constantemente e o que hoje é importante, amanhã deixa de o ser.
Recordo com ternura a Albertina, era daquelas pessoas que não perturbam ninguém, que são para alguns, absolutamente invisíveis, mas que para mim era alguém com quem podia conversar, instigá-la a soltar-se, incentivá-la a enfrentar e retaliar, todas as afrontas que sofria, embora tenha de confessar que pouco consegui nesse sentido, no entanto senti que consegui algo, transmitir-lhe algum amor próprio e alguma segurança pessoal no intuito de perseguir os seus objectivos, sem deixar que os factores externos a perturbassem tanto.

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